domingo, 26 de fevereiro de 2012

Paisagens Sonoras IV


6.      As paisagens sonoras – produto cultural

Quando Schafer iniciou um movimento na Simon Frayser University, no Canadá – o Word Soundscape Project – propunha-se realizar uma análise de determinados ambientes acústicos, de modo a compor um mapa sonoro das regiões estudadas. Com esse estudo surgiu uma preocupação relacionada com as mudanças que estavam a acontecer nos ambientes acústicos, geradas pela industrialização das sociedades e a correspondente inserção do som contínuo ou repetitivo na paisagem sonora desses ambientes, produzidos pela era industrial, que não são encontrados na natureza. O movimento liderado por Schafer acredita que a paisagem sonora deve ser ouvida como uma composição musical, mas que essa ‘música’ pode ser manipulada pela poluição sonora, capaz de esconder as frequências mais baixas do ambiente.

Schafer (2001) procura compreender a história da paisagem sonora, dividindo-a em quatro partes. Na primeira parte, “As primeiras paisagens sonoras”, Schafer tenta reconstituir ambientes sonoros do passado, baseando-se em textos consagrados da literatura universal.

A segunda parte, “a paisagem sonora pós-industrial”, aborda as transformações e impactos da Revolução Industrial e Eléctrica no ambiente sonoro, período em que um conjunto de novos sons apareceu no ambiente acústico. À paisagem sonora pós-industrial denomina-a de lo-fi (baixa fidelidade), por oposição com a paisagem sonora rural, que Schafer (2001) define como hi-fi (alta fidelidade). “O ambiente silencioso da paisagem sonora hi-fi permite o ouvinte escutar mais longe, a distância, a exemplo dos exercícios de visão a longa distância no campo. A cidade abrevia essa habilidade para a audição (e visão) a distância, marcando uma das mais importantes mudanças na história da percepção”. (Schafer, 2001, p.71). Aos sons de fundo, definiu-os como keynotes, por analogia com a música. Aos sons em primeiro plano (feitos para chamar a atenção) de "sinais de som", sons constituídos por dispositivos de aviso, como os sinos das igrejas que, durante séculos, anunciaram os eventos diários de uma comunidade, pelas sirenes dos bombeiros ou da polícia. Os sons que são característicos de uma comunidade são chamados soundmarks. Os exemplos naturais são os géisers, cataratas e o vento, enquanto exemplos culturais, incluem o som das actividades tradicionais. A terminologia de Schafer (2001) ajuda a exemplificar a ideia de que o som de uma localidade particular (keynotes, sinais e soundmarks) pode (como a arquitectura local) expressar a identidade de una comunidade de tal maneira que os lugares podem ser reconhecidos e caracterizados pela sua paisagem sonora.

Na terceira parte do seu estudo, “Análise” da paisagem sonora, Schafer escreve sobre: 1) notação, (diversas tentativas em apreender o som por meio de uma representação visual do som, imagens sonoras). 2) Classificação, (características físicas (acústica), modo como são percebidos (psicoacústica), função e significado (semiótica e semântica) e qualidades afectivas e emocionais (estética)). 3) Percepção, onde procura descobrir quais as mudanças nos “modos de escuta” dos indivíduos e das sociedades conforme determinado período histórico. 4) Morfologia, as formas sonoras que se modificam no tempo e no espaço. Os materiais utilizados pelas culturas de determinadas regiões do mundo, como por exemplo, ferro, madeira, vidro etc., definirão a morfologia sonora dos sons produzidos pela sociedade em que se está inserido. 5) Simbolismo, Schafer (2001), procurou estudar os significados inconscientes que podem ter determinados sons, e, 6) Ruídos, descreve quatro significados atribuídos à palavra ruído conforme os tempos: som indesejado, som não musical, som que fere o aparelho auditivo e distúrbio na comunicação. Apresenta também um relato sobre os riscos e a rapidez no aumento do nível de ruído na paisagem sonora.

Ao pensar os conjuntos de estímulos sonoros, tanto no campo como na cidade, como se fossem composições musicais, Schafer passa a dedicar uma atenção que não se dava à diversidade de sons nos quais estamos imersos, abrindo as portas a novas possibilidades de estudo, em relação à sonoridade da vida na terra.

As paisagens sonoras partem da originalidade, porque cada pessoa é capaz de entender de uma forma única e individual um mesmo som. Essas criações sonoras "ambientais", que são as paisagens sonoras e a ecologia sonora, podem ter como conceito a originalidade, pois duas pessoas podem estar no mesmo espaço, gravando os mesmos sons, porém cada uma capta uma essência diferente dos sons. Com isso criam-se outros segmentos musicais que são importantes nas fases da criação e da inovação (Ferreira, 2008). Os sons funcionam como elementos de coesão ou de diferença. As culturas possuem as suas próprias acústicas, as suas próprias Soundmarks, a partir das quais se cria uma rede de significados, uma relação de sons, construindo uma identidade, uma consciência de pertença a um ou a vários grupos, numa rede de realidades transversais, que une memória e presente, compondo uma paisagem sonora.

Sophie Arkette critica a visão dicotómica de Schafer sobre os sons hi-fi e lo-fi, sublinhando que esta é uma perspectiva marcada pelo que designa de “preconceito urbano”. Afirmar que a paisagem sonora urbana se sobrepõe à natural e que os sons urbanos devem ser limpos para se perceber os sons naturais, é interpretar de forma errada a essência das dinâmicas dos espaços urbanos. Uma cidade não existiria se espelhasse uma paisagem sonora agrária. Assim, levanta-se a questão do que constitui um som puramente natural e porque terão estes sons um estatuto privilegiado negado aos sons urbanos, já que o homem é um elemento central na composição do cenário sonoro e a cidade um produto cultural da sua acção. Os sons de um lugar, assim como a música, representam a paisagem e a cultura nela presente. A música retrata o lugar e os seus valores, com sonoridades peculiares e elementos culturais que compõem parte da paisagem sonora. Dos elementos presentes na música de hoje, temos a natureza e a tecnologia, tambores e computadores, fruto das diferentes culturas ao longo dos tempos. Com a inovação tecnológica, a música, tanto a sua produção e registo como a sua difusão, junta o electrónico com guitarras, acordeões, contrabaixos, percussão, harmoniza o passado e o presente, o rudimentar e o tecnológico, através de uma criação que valoriza a cultura local sem deixar de fora os recursos tecnológicos existentes.

A criação musical consiste na capacidade e sensibilidade de expressar sentimentos através dos sons. Torna-se necessário compreender as manifestações culturais presentes na paisagem, para então estimular a percepção musical e iniciar uma reflexão sobre os elementos utilizados na música contemporânea, possuidora de diferentes tecnologias. Perceber, segundo Merleau-Ponty (1999, p. 63), “(...) não é julgar, é apreender um sentido imanente ao sensível antes de qualquer juízo”. O sentir, por sua vez, é a experiência íntima com o lugar ou com a coisa. Os cinco sentidos (tacto, audição, visão, olfacto e paladar) interagem mutuamente para perceber a paisagem. “Reconhecer-se supõe uma apropriação do espaço pelo sentido. É plenamente uma experiência individual, mesmo se os saberes colectivos e a aculturação também contribuem”. (Claval, 2001, p. 194).

A música é o melhor registo permanente de sons de um tempo, pois nela estão impressos os valores de uma cultura. Assim, ela será útil como um guia para o estudo das modificações nos hábitos e nas percepções auditivas. (Schafer, 2001). Enquanto fenómeno físico, o som está relacionado com concepções culturais e no que diz respeito à música, ele pode ser visto como “som humanamente organizado”. Segundo Alan Lomax, “há uma relação evidente entre estrutura social da sociedade e padrão de expressão musical”. Compreender a paisagem passa também por escutar as performances musicais aí produzidas, por vezes fazendo confluir diversas tradições. Alguns destes exemplos estão ameaçados de extinção, seja pelo êxodo, seja pela globalização imposta pelos media. A identidade de uma comunidade tem também uma dimensão sonora e esta é uma das matrizes mais profundas que é transmitida de geração em geração. Para além da música, muitos outros sons constituem um elemento fundamental do processo de identificação, de pertença a uma determinada comunidade, como os keynote sound, os sons que são criados pela geografia ou o clima de uma região e que estão de tal forma presentes na vida das pessoas que são muitas vezes ouvidos de forma inconsciente. No entanto, quando deixam de ser sentidos, a sua falta torna-se num enorme empobrecimento para a comunidade.

Com efeito, a música possibilita a construção das noções do "eu" e dos "outros", no contexto de uma performance identitária, que se serve das referências/variantes como elementos estéticos desterritorializados e redesterritorializáveis. Neste sentido, a música é uma prática esteticizada que não define o processo de identificação mas que, ao invés, está contida neste último, articulada com as demais práticas que remetem para os códigos éticos e para as ideologias sociais.

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