quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Paisagem Sonora III


4.      O som e a paisagem

Para além das suas características e complexidade intrínsecas, a paisagem tem também uma componente perceptiva e emotiva (Saraiva 1999, cit. por Abreu & Correia, 2001). A paisagem da cidade é uma delas, pois comporta a vida do homem em sua própria complexidade e diversidade de imagens. No caso específico dos sons, o espaço perceptivo de cada cultura urbana será experimentado pelo homem da cidade como um campo de sensações múltiplas (Ferreira, 2008).
Desde a revolução industrial que é cada vez mais notória uma intensa transformação do ambiente acústico mundial. A industrialização e a urbanização modificaram os sons do quotidiano, principalmente nas cidades, onde a proximidade cada vez maior entre as máquinas e o ser humano, assim como a concentração de pessoas nas áreas urbanas e a velocidade da informação se intensificam. Com as conquistas na manipulação eléctrica aconteceram importantes inovações tecnológicas que mudaram significativamente a forma de geração, difusão e recepção sonora, como o telégrafo, a rádio, a televisão e agora a internet.
O interesse pelo som das paisagens é um tema relativamente recente entre os geógrafos e manifesta-se apenas na corrente Humanista, no contexto das experiências sensoriais que os lugares proporcionam. O elemento som/ruído está cada vez mais presente nos estudos dos profissionais do Ordenamento do Território, urbanistas, engenheiros, designers, no contexto da qualidade ambiental.
Os sons, apesar do crescente ruído de fundo, sobretudo em ambientes urbanos, são referências fortes nas leituras e memórias dos lugares, tanto pela presença como pela ausência. Estamos rodeados de inúmeras frequências sonoras, como os ruídos de conversas, automóveis, celulares, sirenes ou os sons da natureza, que constituem a paisagem sonora de um local. Este conceito de paisagem é diferente do processo da composição musical feita a partir das notas musicais e instrumentos convencionais, para expressar um sentimento do autor. A paisagem sonora é um facto do ambiente e pode ser manipulada e modificada por quem escuta (Ferreira, 2008).
No âmbito da geografia cultural, que interpreta o espaço do ponto de vista subjectivo, a paisagem é estudada como tudo o que a vista humana alcança, compreendendo além das características perceptivas visuais (cores, dimensões, proporções, formas) também percepções como a auditiva ou o tacto. Daí que observando a paisagem do ponto de vista da audição, o indivíduo poderá apreender um conjunto de sonoridades relativas ao espaço percebido e identificá-las (Ferreira, 2008).
A paisagem sonora, ignorada por grande parte dos geógrafos, possui importante material para o estudo geográfico. No que se refere aos sons, são as variações espaciais dos ruídos que constituem elemento de estudo interessante. “A transição do campo para a cidade já revela um contraste surpreendente no plano sonoro. Mas na cidade, [...] o ruído dos veículos se funde com vestígios do canto dos pássaros ou manifestações de uma presença humana residual”. A paisagem, multifacetada e complexa, combina formas e cultura, significados e valores. As formas (táctil, visual, sonora, olfactiva), estão em constante (re) construção através da memória, individual e do grupo, onde se consolidam os significados e os valores. “Neste sentido, quem sabe perceber uma paisagem, consegue entender seu valor, perceber a importância da mesma em sua vida, criar vínculo afectivo com a mesma e, consequentemente, defender a sua perpetuação” (Schier, 2003).
Para Milton Santos (1996, p. 61) a paisagem é composta “não apenas de volumes, mas também de cores, movimentos, odores, sons, etc.”. A paisagem não pode ser apreendida apenas com uma leitura visual, mas através de todos os sentidos. A paisagem torna-se subjectiva, tornando-se única, na medida em que o colectivo destaca as suas semelhanças e forma uma unidade no imaginário social.
A paisagem como “uma maneira de compor e harmonizar o mundo externo numa ‘cena’ (Cosgrove, 1998, p. 98) deve admitir os sons como elementos constituintes da mesma. Eles também dão significado às coisas, possuem valores culturais, como, por exemplo, o toque do sino de uma igreja, os diferentes sotaques e formas de linguagem, o som do trânsito, etc. A audição é um modo de tocar a distância, e a intimidade do primeiro sentido funde-se à sociabilidade cada vez que as pessoas se reúnem para ouvir algo especial” (Schafer, 2001, p. 29).
5.      O som como elemento cultural

A audição é a sede do equilíbrio e orientação, já que o labirinto – estrutura fisiológica responsável pelas sensações de estarmos em pé ou sentados – está localizado junto aos tímpanos. Este é também um dos motivos pelos quais a audição é o sentido responsável pela noção de tridimensionalidade do espaço. Carlos Fortuna afirma a possibilidade de se conhecer os espaços urbanos por meio das suas sonoridades (Fortuna, 2001, p.1).

Além de orientação e como forma de conhecimento do espaço, o som pode ser também encarado como uma importante fonte para a identificação do espaço, em relação aos seus locais únicos ou a usos específicos de determinados lugares como esquinas, ruas ou praças. Por exemplo, a praça do peixe pode ser identificada pelos pregões das vendedoras.

Os estudos da percepção sonora mostram que o ouvido é o sentido hiperestésico por excelência, isto é, o organismo estimulado ininterruptamente pela vibração sonora e que reage também ininterruptamente. Comparando o sentido da visão com a audição, constata-se que percebemos o que vemos como exterior a nós, enquanto a audição provoca uma integração entre a percepção do ambiente e a auto percepção, ou seja, os sons envolvem-nos (Ferreira, 2008). De resto, “a partilha de um mesmo ambiente sonoro pode promover o sentido particular de colectividade, mesmo quando a consciência da sua unidade, assente em meios sonoros e auditivos, se revele bem mais abstracta do que a conseguida em torno da comunicação oral e da fala” (Simmel, 1981, cit. por Fortuna, 1999, p. 106).

Durante a década de 1960, Murray Schafer estabelece a distinção fundamental entre as noções de campo sonoro e paisagem sonora. Por campo sonoro, Schafer refere-se ao espaço acústico gerado a partir de uma determinada fonte emissora (humana ou material) que irradia e faz distender a sua sonoridade numa área ou território bem definidos. As cidades são espaços por excelência onde se regista a presença simultânea de vários campos sonoros, que se sobrepõem e articulam entre si, desde sons em vias de desaparecimento, até sons novos de raiz tecnológica e industrial, que se globalizam (Fortuna, 1999). É precisamente desta sobreposição de diferentes sons que surge uma paisagem sonora, ou seja, um ambiente sonoro multifacetado que envolve os diferentes sujeitos receptores ou grupo receptor, tornando fundamentalmente antropocêntrica pelo realce da apropriação e reterritorialização do campo sonoro que é emitido (idem). A noção de paisagem sonora assume-se assim como essencial na compreensão do modo como o som atribui sentido, caracteriza e identifica um espaço ou lugar.

As paisagens sonoras estão relacionadas com o tempo e o espaço, e podem ser vistas de um ponto de vista global ou local (Raimbault & Dubois, 2005). As Soundscapes evoluem ao longo da história, mas também ao longo do dia, do ano, das estações. O estímulo sensorial auditivo pode ser um elemento identificador e diferenciador dos espaços urbanos, compondo paisagens reconhecíveis pelos sujeitos que as habitam e assumindo uma identidade própria.

Segundo o conceito proposto por Lefebvre (1997), a ritmanálise, as cidades são simultaneamente poli-rítmicas e arrítmicas, devido aos ritmos quotidianos – que apelida de “música da cidade” –, variando de acordo com o contexto espacial e temporal. Deste modo, Lefebvre (idem) coloca em evidência as características eminentemente sociais dos ritmos dos espaços e o modo como estes podem ser reveladores de normas e valores sociais. Neste sentido, afirma que os ritmos, tal como a própria cidade, possuem uma história e um passado. Amphoux (1993) desenvolve o conceito de assinatura sonora, referindo-se a um som ou conjuntos de sons que assinalam o espaço ou o tempo e confirmam de certa maneira a sua “autenticidade”. Identifica três tipos de assinaturas sonoras: o Emblema sonoro (um som ou conjunto de sons que, codificados socialmente, podem ser reconhecidos por toda a gente, habitantes ou estranhos); o Som cliché (um som ou sons que implicam uma codificação colectiva e só pode ser reconhecido pelos habitantes do local); o Som postal (organização mais complexa de sons que simbolizam a essência da cidade).

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