quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Paisagens Sonoras V


7.    Soundscapes e Marketing Territorial

A música, enquanto produção cultural de um grupo ou indivíduo, é também um produto cultural da paisagem onde esses indivíduos actuam e nele imprimem a sua marca, seja através da cultura dominante ou das culturas alternativas, denominadas no meio musical de underground. Esse produto cultural das paisagens, as Soundscapes, torna-se ao mesmo tempo um elemento diferenciador de um determinado espaço e dos grupos sociais que o compõem, ou seja, da relação homem/meio imprimida na paisagem, valorizando e transformando-o num elemento diferenciador em relação a outros territórios. É um elemento de afirmação de uma identidade, várias vezes adoptando um cariz político e nacionalista, tornando-se até um símbolo acústico de uma identidade nacional ou étnica. O simbolismo e mediatismo de algumas Soundscapes, perpetuadas na memória colectiva pelo cinema e música tradicional, como a música Polka (na Boémia), o Tango na Argentina, ou o Samba no Brasil, viram na World Music um meio de valorizar o seu território pela riqueza cultural da sua Soundscape. Através de estratégias de marketing territorial, procuram a promoção de lugares, de modo a aumentar a sua centralidade na captação de turistas e novos residentes, promovendo a sua soundscape como produto turístico que se pretende vender, e como património cultural, que se pretende preservar.

Embora as Soundscapes não sejam exclusivas dos meios urbanos, é aí que se destacam pela sua dimensão no território em que se inserem e pelo dinamismo, inovação e competição que caracterizam os meios urbanos. A heterogeneidade e cosmopolitismo do meio urbano possibilitam a existência de diferentes matrizes culturais, logo, diferentes Soundscapes, como em Nova York. Algumas cidades são conhecidas mundialmente pelas suas Soundscapes, sendo algumas até icónicas de determinada cidade, como o Tango, em Buenos Aires, ou Liverpool dos Beatles. As Soundscapes marcam cidades e identificam-nas (Fernandes 2008). Lisboa e o Fado, Dublin e a música Folk, Seatle e o Grunge, Sevilha e o Flamengo, são marcas indissociáveis no contexto do marketing territorial.

Apesar das expressões artísticas sonoras resultarem de complexas mobilidades de populações, instrumentos musicais e estilos sonoros, que criam fenómenos de partilha, de hibridismo e diversificação, muitos géneros musicais, em especial os classificados como música tradicional, são associados a lugares específicos (Fernandes 2009). A World Music, enquanto manifestação multiterritorial, constitui-se como um produto numa lógica de concorrência global, na qual as indústrias culturais promovem as respectivas Soundscapes e lhe dão amplitude, através do seu poder de difusão e captação de mercados. A promoção de uma soundscape é realizada pela estetização da sua soundmark, utilizando para tal não só a música, como também  o cinema e a arte, onde a imortalizam.

A crescente popularidade da World Music é uma das expressões da globalização sociocultural, económica e tecnológica que se estruturou nas últimas décadas (Fernandes 2009). A criação dos Grammys para a World Music e a criação, pela UNESCO, do estatuto de Património Oral e Imaterial da Humanidade, são exemplos do crescente interesse na World Music e da sua afirmação global. A passagem do analógico ao digital e a compressão espaço-tempo, resultado das inovações tecnológicas das últimas décadas, foram também determinantes na sua afirmação, na medida que tornou possível a sua difusão e captação por um número cada vez maior de indivíduos.

A sua projeção global deve-se também ao seu carácter multiterritorial. A sua territorialidade é amiúde utilizada, através da propaganda e do marketing territorial, como símbolo de um Estado, de uma Nação ou de uma região. Em Portugal temos o exemplo do Fado, o Folk na Irlanda ou o Tango na Argentina, funcionam como expressões de uma homogeneidade e união utópica de um território.

A música é também símbolo de determinados espaços topológicos, identificando-se como símbolo de agregação identitária de múltiplas diásporas, com origem comum, num centro difusor, e vértices de acolhimento, onde ocorre uma encenação desse centro. Existem diversos exemplos destas diásporas no mundo, como a da música indiana, da música folk ou dos ritmos africanos que, não raras vezes, sofrem processos de hibridismo durante a sua deslocalização.

A componente territorial da música é também “um meio de reterritorialização, de recuperação de vínculos sociais e espaciais e conquista de poder por grupos que, por não pertencerem às elites socioeconómicas e políticas, têm instrumentos menos eficazes de afirmação” (Fernandes 2009).

A crescente concorrência global na captação de investimentos e fluxos, leva a uma tentativa de adquirir maior centralidade e maior polarização, através do marketing territorial, e é neste contexto que a World Music, pela sua multiterritorialidade, pela forma como se reproduz na rede de indústrias culturais, se projecta nesta época de digitalização da informação e, apesar da sua origem híbrida e de contacto, se vincula a determinados espaços geográficos, interfere na (re)construção da imagem de lugares e, com isso, no marketing territorial dos mesmos (Fernandes 2009). 


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